A análise hermenêutica no filme
Doze homens e uma sentença
O filme "Doze Homens e uma Sentença" nos expõe, de forma lúcida, como um bom trabalho hermenêutico pode ser importante e até como um instrumento fundamental na análise jurídica. 03/dez/2004
Por Sandra Reis da Silva
O filme em referência, que se passa inteiramente no interior da sala do juri de um Tribunal americano, na cidade de Nova York, tem apenas a sua cena inicial ainda na sala de audiências, quando o Juiz, de forma clara, orienta aos doze jurados para a regra básica a ser por eles utilizada para a definição do veredicto, o qual poderia conduzir o réu à pena de morte pelo crime de homicídio, contra o seu próprio pai. Os jurados só deveriam condenar ou absolver o réu quando tivessem certeza do veredicto e, em caso de dúvida ou discordância quanto a sua culpa ou inocência, deveria se utilizar do bom senso e fazer com que prevalecesse a inocência, até que existisse unanimidade de veredictos entre todos os doze jurados.
O que o juiz quis dizer é muito simples: precisa-se ter certeza para se condenar ou absolver um indivíduo, para que não se cometa injustiças e condene-se um inocente ou se absolva um culpado. Ambos os veredictos seriam injustos: a condenação injusta, seria cruel para com o réu, ao lhe ser privado o direito de viver, por um crime que ele não foi responsável; já a absolvição indevida seria injusta para com a sociedade, colocando-a em risco ao absolver um elemento perigoso, liberando-o indevida e prematuramente para o convívio social.
Para tanto, contudo, far-se-á necessário que o juri responsável se certifique de todas as circunstâncias atenuantes e agravantes, que observe atentamente todas as provas e analise criteriosamente todos os testemunhos e indícios, o que, em essência, traduz-se por ser uma análise hermenêutica.
Decerto, ao juri não caberá proceder a uma análise hermenêutica de um texto, de um livro ou de um filme, mas sim de um processo judicial, onde caberá aos jurados exprimir um veredicto final quanto à culpabilidade ou inocência do réu e, em se tratando de Tribunais de alguns Estados americanos, esta sentença que será proferida pelo juiz, com base no veredicto do juri, poderá definir pela pena de morte – o que seria o caso, no filme em questão.
Já recolhidos à sala do juri, os doze jurados seguiram o procedimento padrão, quando fizeram uma votação preliminar, antes mesmo de discutir quaisquer aspectos, apenas para conhecer o entendimento prévio de cada um e, somados, de todos eles, no seu conjunto. E surge a surpresa não esperada por onze dos jurados, quando apenas um deles declarou entender ser inocente o réu. E, em seguida, fez este jurado questão de salientar que ele não tinha certeza da inocência do réu; mas que também não estava convicto quanto a sua culpa, pelo assassinato do seu próprio pai.
A despeito dos atritos ocorridos entre os jurados, naquela sala do juri, iremos nos ater à análise hermenêutica com a qual esse jurado discordante, que aqui chamaremos de “Oitavo Jurado”, buscou conduzir a investigação para a apuração das provas, indícios que demonstrassem e/ou comprovassem possibilidade de culpa e/ou de inocência.
O “Oitavo Jurado” apresenta aos demais onze membros do juri a necessidade de se analisar hermeneuticamente cada uma das provas apresentadas pela promotoria, cada um dos detalhes dos depoimentos prestados por cada uma das testemunhas, cada um dos fatos, objetos e circunstâncias ligadas à cena do crime, ao ambiente próximo e interligado à esta cena, além de detalhes mínimos e específicos, particulares e individuais, ligados às próprias testemunhas. E eles se lançam a fazê-lo, passo a passo, como a autopsiar as entranhas de todos e cada um dos elementos que lhes houvera sido apresentado durante o julgamento.
Discutiu-se sobre o tempo em que o trem levava para passar, provocando um imenso barulho, capaz o suficiente de impedir ser crível que uma das testemunhas pudesse assegurar, com certeza, que realmente ouviu ser a voz do réu ameaçar o próprio pai de morte; questionou-se a alegação da promotoria, quanto a questão de ser incomum a faca usada para o crime, baseando-se esta alegação no fato de na loja em que a vítima adquiriu a faca, aquela ser a última do estoque daquela loja, quando o “Oitavo Jurado” consegue provar que o mesmo modelo de faca existia em uma outra loja do mesmo bairro; buscou-se reconstituir o tempo necessário para amparar ou negar a alegação do testemunho do vizinho que, sendo manco de uma perna e estando no seu quarto, sentado à cama no momento do crime, afirmava ter visto o réu, imediatamente após o som do corpo da vítima ter caído no chão, descer as escadas e cruzar com ele, na porta da sua casa; debateu-se a respeito dos possíveis motivos para o lapso de memória do réu, o qual, tendo alegado estar no cinema no momento do crime, não conseguia se lembrar do título do filme ou dos seus atores; reavivou-se na memória dos jurados o fato da testemunha, que morava em frente ao local do crime, mesmo tendo as características marcas físicas, sobre o nariz, adquiridas pelo o uso de óculos, garantir ter visto o assassinato, mesmo tendo um trem passando por entre a sua janela e a janela do crime e estando a referida testemunha deitada à cama – momento em que, estima-se, ninguém utiliza óculos.
O “Oitavo Jurado”, logo de imediato, sente a imensa resistência de quase todos os outros onze jurados, mas rapidamente, um a um, começam a se sentir inseguros quanto ao seu posicionamento inicial de entender ser o réu culpado pelo homicídio do seu próprio pai.
A cada rodada de votação, ao mesmo tempo em que ia sendo ampliada a contagem dos votos de “inocente”, cada um dos próprios jurados conseguiam “ver” de forma diferente o mesmo fato, o mesmo dado, mesma prova, depoimento, circunstância anteriormente analisados, na sala de audiência. O trabalho hermenêutico serviu para demonstrar que, sob óticas diferentes, um mesmo objeto ou fato pode ser “visto” por ângulos, por prismas diferentes. Um provável inicial veredicto de culpado passa a ser lentamente transformado em um veredicto de inocente, não apenas pela simples mudança dos vocábulos, de substantivos, mas sim de entendimento do significado real de cada fato, cada dado, prova, depoimento, circunstância anteriormente analisado.
Os jurados se permitiram passar a exercitar a sua capacidade de enxergar por detrás do que antes eles próprios haviam analisado. E essa capacidade se deve, unicamente, à disposição por não se ater ao significado frio, puro e simples, das palavras, dos dados, provas, indícios, depoimentos, circunstâncias e, até mesmo, do inconsistente álibi do réu.
Cada um dos depoimentos prestados na sala de audiências, analisados de forma individual, por cada um dos doze jurados, isoladamente, passaram-lhes inicialmente uma impressão absolutamente diferente da que agora lhes imprimia, naquela sala do juri, quando analisados considerando-se o conjunto dos fatos, das provas, depoimentos, circunstâncias, ambiente do crime e, também, do álibi do réu. Ou seja, uma informação isolada apresenta um sentido, um significado diverso do que poderá assumir, quando exposta em um conjunto de outras informações.
Aliás, é assim que funciona com os textos. Quando lemos, simplesmente, as palavras ali grafadas, inicialmente o que se identifica são substantivos, verbos, adjetivos, advérbios, pronomes e conjunções que, devidamente intercaladas com vírgulas, ponto-e-vírgula, pontos de continuação, exclamações, interrogações, reticências e ponto parágrafo, em seu conjunto, escrevem frases. As expressões somente surgem quando se dá a primeira compreensão do sentido daquela frase. Aquela expressão, ao lado de uma e tantas outras, farão surgir os textos.
Leis também são textos, formados por expressões que traduziram frases escritas com palavras, às quais se adiciona o aspecto imperativo, próprio das normas jurídicas.
Com um veredicto, não poderia, jamais, ser diferente. Ressalte-se, contudo, que um veredicto irá fazer a “leitura de trás para frente”, quando fará com que a hermenêutica se dê a partir da compreensão, até se chegar ao fato. O detalhe é que a compreensão se dará analisando, primeiramente, a essência da Lei, que determina que o juri deve julgar de forma consciente e convicta, o que somente será possível de refazendo o processo, contudo, no sentido inverso ao da ordem natural dos fatos.
Então, buscando-se provar que o réu era culpado, chegou-se à certeza de sua inocência, utilizando-se os mesmos instrumentos e recursos: a hermenêutica jurídica.
[1] DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA. Título original: “Twelve Angry Men”. Direção: Sidney Lumet. Produção/Distribuição: Fox/MGM. Elenco: Henry Fonda, Lee J. Cobb, Ed Begley, E.G. Marshall, JackWarden, Martin Balsam, John Fiedler, Jack Klugman, Edward Binns, Joseph Sweeney, George Voskovec, Robert Webber. EUA. 1957. Drama. DVD. 96 min.
FONTE
[1] DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA. Título original: “Twelve Angry Men”. Direção: Sidney Lumet. Produção/Distribuição: Fox/MGM. Elenco: Henry Fonda, Lee J. Cobb, Ed Begley, E.G. Marshall, JackWarden, Martin Balsam, John Fiedler, Jack Klugman, Edward Binns, Joseph Sweeney, George Voskovec, Robert Webber. EUA. 1957. Drama. DVD. 96 min.
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