segunda-feira, 17 de julho de 2017

Contos filosóficos do mundo inteiro, de Jean-Claude Carrière

Capítulo 11 - A justiça é a nossa invenção hesitante





CONDENAÇÕES

Um homem culpado pelo não-cumprimento de uma grave obrigação foi condenado à prisão perpétua.
Um dos seus amigos foi vê-lo na cadeia e lhe disse:
- Mas isso é horrível! Você se deu conta? Vai ficar na prisão por toda a vida?
- Não, você se engana - disse-lhe o condenado. - Não é por toda minha vida. É a partir deste momento, apenas. (p.154)


A MELHOR PARTILHA

Quando se trata de partilhar uma herança entre dois irmãos, jamais encontrei uma fórmula melhor do que essa que surgiu há muito tempo na França:
- Que o mais velho divida os bens em duas partes, e que o mais moço escolha primeiro. (p.155)


A BOA BOLSA

Uma história judaica de grande sabedoria conta que um homem pobre encontrou uma bolsa contendo quinhentos rublos, o que era, então, uma soma considerável. Ao saber que o homem mais rico da vila havia perdido sua bolsa, e que tinha oferecido cinquenta rublos a quem a devolvesse, ele devolveu a bolsa.

O homem rico verificou o conteúdo da bolsa e assumiu um ar severo para dizer ao homem pobre:

--Vejo que você já pegou sua recompensa, porque minha bolsa continha quinhentos e cinquenta rublos, e não encontro aqui senão quinhentos. Então, não lhe devo nada.

Muito encolerizado, o homem pobre arrastou o rico até diante do rabino, a quem foi contar o incidente.

--Estou certo –disse o rabino ao homem rico—de que você diz a verdade. Um homem como você seria incapaz de mentir.

O homem rico começou a se alegrar, e o homem pobre, a se indignar, quando o rabino se virou para o pobre, estendendo-lhe a bolsa, dizendo:

--Você, por sua vez, não é desonesto. Porque, se fosse desonesto, teria guardado toda a bolsa para si mesmo.

Depois, virando-se para o homem rico, ele concluiu:

--Assim, não foi a sua bolsa que ele encontrou. Que ele a guarde, esperando que o verdadeiro proprietário a reclame. (p.158)



O REI CLARIVIDENTE

Um rei que quase todo dia buscava a Justiça (porque não confiava em ninguém), não sabia como discernir a sinceridade da mentira, como descobrir os culpados. A Justiça, que ele usava da melhor maneira que podia, parecia-lhe, entretanto, uma atividade confusa, quase aleatória.

Um dia, um homem, que se recusava a dizer o próprio nome, veio visitá-lo e propôs um verdadeiro remédio para sua incerteza.
– Posso – ele disse ao rei – conceder-lhe uma faculdade extraordinária, aquela de distinguir, de maneira segura, o justo do injusto.
 – Quem é você? – o rei perguntou.
– Não se preocupe com a minha identidade. Venho de um lugar onde todos os valores são, enfim, evidentes.
– Você sabe ler os pensamentos?
– Exatamente.
– Está bem, o que pode ler nos meus?
– Que desconfia de mim.

O rei viu que esse homem, que lhe dava outras provas da sua clarividência, tinha razão. Indubitavelmente, tratava-se do diabo em pessoa, ou de um dos seus mensageiros. O rei desconfiou, a princípio recusou e acabou por ceder, porque a tentação era muito forte. De qualquer modo, ele aceitou fazer uma tentativa.

Na audiência do dia seguinte, o mundo e seus habitantes lhe apareceram sob um prisma novo. Não somente ele podia ver e enxergar a culpabilidade de um ou de outro, tão claramente quanto se pode ver o sol em pleno dia, mas também percebia as sombras nos pensamentos dos amigos, das suas mulheres, dos filhos e até dos seus assessores, que o ajudavam com essa difícil tarefa da Justiça. Por toda parte ele via a cupidez, a inveja, os malefícios dissimulados, incluindo os crimes.

Depois de alguns dias de hesitação, ele acabou por sentir seu espírito se perturbar. Ele dormia mal, suspeitava até dos filhos, acreditava-se obrigado a punir seus conselheiros, nos quais havia imprudentemente depositado sua confiança – e assim por diante.

Ele chamou o demônio e lhe disse:
– Essa experiência é dolorosa. Não sei se quero continuá-la,
 – Dolorosa, sem dúvida – disse-lhe o outro –, mas bastante útil, você deve reconhecer.
 – A propósito – disse então o rei –, você não me pediu nada, nem me disse o que devo lhe dar em troca.
– Com efeito, eu não lhe pedi nada.
– Ouvi dizer – disse o rei – que normalmente o diabo pede a alma daqueles a quem ele concede esse gênero de favor. E que, quando eles morrem, ele os acolhe no inferno, onde queimam por toda eternidade.
– Normalmente, sim – disse o demônio. – Normalmente, as coisas acontecem dessa maneira.
– Você pode me restabelecer tal como eu era? Com minhas hesitações e minha ignorância?
– É o que deseja?
– Sim. Esta clarividência suprema não é humana. Eu não poderia suportá-la por muito tempo. Para o que me resta de vida, ela será um tormento terrível. Não quero ser infalível; prefiro ficar com minhas dúvidas, com minhas hesitações, nessa confrontação permanente com a verdade dos homens. Por favor, acabemos com essa experiência, que eu acho insuportável.
– Sei muito bem que sua nova situação não é repousante. E, contudo, quem não desejaria adquiri-la?
– Aqueles que têm esse desejo se enganam. Não conhecem a dor do conhecimento. Agora compreendo por que os cristãos dizem que Deus puniu Adão e Eva quando estes tentaram enxergar o bem e distingui-lo do mal. Reponha a obscuridade no meu pensamento, eu lhe suplico. Que a Justiça volte a ser, para mim, o trabalho duro que sempre foi.
– Não posso fazer isso – disse-lhe o demônio.
– Mas você me prometeu! Lembre-se: você aceitou que eu fizesse uma tentativa!
– No momento em que lhe dei meu acordo, você ainda não possuía o poder que eu ia lhe atribuir. Você teria podido, então, ver que eu mentia.
– Então era mentira?
– Sim.
– Sim, sei que está falando a verdade – disse o rei. – De repente eu vejo claramente. Você mentiu. E agora me diz a verdade.
– A verdade exata.
 – Não posso, então, voltar a ser aquele que eu era?
– Você não pode. Além disso, não está em meu poder remetê-lo de volta à sua incerteza. Eu lhe deixei a escolha. Você aceitou o que lhe propus, acreditando que se tratava de uma mera tentativa. Você não pode voltar atrás. E eu também não.
– Não existe nada a fazer?
– Nada a fazer.

O demônio se inclinou diante do rei e se retirou em direção à porta. Antes de sair, ele se virou e disse:

Quanto ao pagamento, não se inquiete, não tem nada para se preocupar. De nenhuma maneira vou querer sua alma. Eu não lhe pedirei nada para o além. Porque você terá conhecido o inferno sobre a Terra.

(pp. 159-160)

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