terça-feira, 18 de julho de 2017

Trilogia das barcas, de Gil Vicente


O gênero Auto não tem uma estrutura definida, não se divide em atos ou cenas específicas. Existe um percurso cênico padrão - as personagens começam por se dirigir à Barca do Inferno (que está mais enfeitada, que salta mais à vista), percebem que aquela barca se dirige ao Inferno e vão à Barca da Glória. As personagens que não podem entrar nesta barca, voltam à Barca do Inferno, onde acabam por ficar.mas à maneira clássica. A estrutura é vista pelo percurso cênico de cada personagem, que demonstra as suas ações enquanto "julgado".

Cada personagem discute com o Diabo e com o Anjo para qual das barcas entrará. No final, só os Quatro Cavaleiros e o Parvo entram na Barca da Glória (embora este último permaneça toda a ação no cais, numa espécie de Purgatório), todos os outros rumam ao Inferno (ao Judeu, por não se querer separar do bode que levava consigo, não lhe é permitido sequer entrar na Barca do Inferno -- este vai "à toa", ou seja, agarrado à barca por uma corda). O Parvo fica no cais, o que nos transmite a ideia de que era uma pessoa bastante simples e humilde, mas que havia pecado. O principal objetivo pelo qual fica no cais é para animar a cena e ajudar o Anjo a julgar as restantes personagens, é como que uma 2ª voz de Gil Vicente.

A presença ou ausência do Parvo no Purgatório no desfecho da peça acaba por ser pouco explícita, uma vez que esta acaba com a entrada dos Cavaleiros na barca do Anjo sem que existissem quaisquer outros comentários do Anjo ou do Parvo sobre o seu destino final.

ALEGORIA MORAL E SÁTIRA SOCIAL

Mais que uma farsa, Gil Vicente fez de O auto da barca do inferno uma impiedosa crítica à sociedade em que viveu, principalmente à ganância e à hipocrisia com a ascensão de um pensamento "mercantil" que, a seu ver, afastava o homem dos valores cristãos cuja moralidade e a ética muito vezes se distanciava do Cristianismo oficial. Entre a moralidade e a farsa, o que o auto apresenta é um julgamento de tipos sociais que fornece ao leitor uma visão, ainda que parcelar, do que era a sociedade portuguesa do século XVI. 

PERSONAGENS

As personagens desta obra são de dois tipos: alegóricas (Anjo e o Diabo, representando respectivamente o Bem e o Mal  que são como que os "juízes" do julgamento das almas, tendo em conta os seus pecados e vida terrena. No segundo grupo, inserem-se as personagens-tipo: o Fidalgo (D. Anrique), o Onzeneiro, o Sapateiro (Joanantão), o Parvo (Joane), o Frade (Frei Babriel), a Alcoviteira (Brísida Vaz), o Judeu (Semifará), o Corregedor e o Procurador, o Enforcado e os Quatro Cavaleiros. Todos mantêm as suas características terrestres, o que as individualiza visual e linguisticamente, sendo quase sempre estas características sinal de corrupção. Cada uma representa uma classe social, determinada profissão ou mesmo uma crença. 

À medida que estas personagens vão surgindo vemos que todas trazem elementos simbólicos, que representam os seus pecados na vida terrena e demonstram que não têm qualquer arrependimento. Os emblemas são:

Fidalgo: um manto e pajem (criado) que transporta uma cadeira de espaldas(costas altas). Estes elementos simbolizam a opressão dos mais fortes, a tirania e a presunção do moço.
Onzeneiro: bolsão. Este elemento simboliza o apego ao dinheiro, a ambição, a ganância e a usura.
Parvo: não traz símbolos cénicos, pois tudo o que fez na vida não foi por maldade. Esta personagem representa a inocência e a ingenuidade.
Sapateiro: avental e formas de sapateiro. Estes elementos simbolizam a exploração interesseira, da classe burguesa comercial.
Frade: uma Moça (Florença), uma espada, um escudo, um capacete e o seu hábito. Estes elementos representam a vida mundana(dada aos prazeres do mundo) do clero, e a dissolução dos seus costumes.
Alcoviteira: hímenes postiços, arcas de feitiços, armários de mentir, furtos alheios, jóias de seduzir, guarda-roupa de encobrir, casa movediça, estrado de cortiça, coxins e moças. Estes elementos representam a exploração interesseira dos outros, para seu próprio lucro e a sua actividade de alcoviteira ligada à prostituição.
Judeu: bode. Este elemento simboliza a rejeição à fé cristã, pois o bode é o simbolo do Judaísmo.
Corregedor e Procurador: processos, vara da Justiça e livros. Estes elementos simbolizam a magistratura.
Enforcado: "baraço" (a corda com que fora enforcado) ao pescoço. Este elemento representa a sua vida terrena vil e corruptível.
Quatro Cavaleiros: cruz de Cristo, que simboliza a fé dos cavaleiros pela religião católica.

SOBRE OS PERSONAGENS

Diabo: condutor das almas ao Inferno, conhece muito bem cada um dos personagens que lhe cai às mãos; é zombeteiro, irônico e bom argumentador. Gil Vicente não pinta o Diabo como responsável pelos fracassos e males humanos; o Diabo é um juiz, que exibe às claras o lado mais recôndito dos personagens, penetrando nas consciências humanas e revelando o que cada um deles procura esconder.

Fidalgo: representa a nobreza, e chega com um pajem, tem uma roupagem exagerada e uma cadeira de espaldar, elementos característicos de seu status social. O diabo alega que o Fidalgo o acompanhará por ter tido uma vida de luxúria e de pecados, sendo portanto, condenado pela vida pecaminosa, em que a luxúria, a tirania e a falta de modéstia pesam como graves defeitos. Ao Fidalgo, nada lhe valem as compras de indulgências, ou orações encomendadas. A figura do Fidalgo, arrogante e orgulhoso, permite a crítica vicentina à nobreza, e é centrada nos dois principais defeitos humanos: o orgulho e a prática da tirania.

Onzeneiro: o segundo personagem a ser inquirido é o Onzeneiro, usurário que ao chegar à barca do Diabo descobre que seu rico dinheiro ficara em terra. Utilizando o pretexto de ir buscar o dinheiro, tenta convencer o Diabo a deixá-lo retornar, demonstrando seu apreço às coisas mundanas. O Diabo não aceita que o Onzeneiro volte à terra para reaver suas riquezas, condenando-o ao fogo do Inferno.

Parvo: um dos poucos a não ser condenado ao Inferno. O Parvo chega desprovido de tudo, é simples, sem malícia e consegue driblar o Diabo, e até injuriá-lo. É uma alma pura, cujos valores são legítimos e sinceros. Ao passar pela barca do Anjo, diz ser ninguém. Então, por sua humildade e por seus verdadeiros valores, é conduzido ao Paraíso. Em várias passagens da peça, o Parvo ironiza a pretensão de outros personagens, que se querem passar por "inocentes" diante do Diabo.

Sapateiro: representante dos mestres de ofício, que chega à embarcação do Diabo carregando seu instrumento de trabalho, o avental e as formas. É um desonesto explorador do povo. Habituado a ludibriar os homens, procura enganar o Diabo, que espertamente não se deixa levar por seus artifícios e o condena.

Frade: como todos os representantes do clero, focalizados por Gil Vicente, o Frade é alegre, cantante, bom dançarino e mau-caráter. Chega acompanhado de sua amante, e acredita que por ter rezado e estar a serviço da fé, deveria ser perdoado de seus pecados mundanos. Dá uma lição de esgrima ao Diabo (que finge não saber manejar uma arma), o que prova a culpa do espadachim, já que frades não lidam com armas. E contra suas expectativas, é condenado ao fogo do inferno. Deve-se dosar que Gil Vicente desfecha ardorosa crítica ao clero, acreditando-o incapaz de pregar as três coisas mais simples: a paz, a verdade e a fé.

Brísida Vaz: agenciadora de meretrizes, misto de alcoviteira e feiticeira. Por sua devassidão e falta de escrúpulos, é condenada. É conhecida de outros personagens que utilizaram em vida seus serviços. Inescrupulosa, traiçoeira, cheia de ardis, não consegue fugir à condenação. Personagem que faz o público leitor conhecer a qualidade moral de outros personagens que com ela se relacionaram.

Judeu: entra acompanhado de seu bode. Detestado por todos, até mesmo pelo Diabo que quase se recusa a levá-lo, é igualmente condenado, inclusive por não seguir os preceitos religiosos da fé cristã. Bom lembrar que, durante o reinado de D. Manuel, houve uma perseguição aos judeus visando à sua expulsão do território português; alguns se foram, carregando grandes fortunas; outros, converteram-se ao cristianismo, sendo tachados cristãos novos.

Corregedor e o Procurador: ambos representantes do judiciário: juiz e advogado. Deveriam ser exemplos de bom comportamento e acabaram sendo condenados justamente por serem tão imorais quanto os mais imorais dos mortais, manipulando a justiça de acordo com as propinas recebidas, pois faziam da lei sua fonte de recursos ilícitos e de manipulação de sentenças. A índole moralizadora do teatro vicentino fica bastante patente com mais essa condenação, envolvendo a Justiça humana, na figura dos representantes do Direito.

Enforcado: chega ao batel acreditando ter o perdão garantido por seu julgamento terreno e posterior condenação à morte. Isso teriam lhe redimido dos pecados, mas é condenado também a ir para o Inferno.

Cavaleiros Cruzados: finalmente chegam à barca quatro cavaleiros cruzados, que lutam pelo triunfo da fé cristã e morrem em poder dos mouros. Obviamente, com uma ficha impecável, serão todos julgados, perdoados e conduzidos à Barca da Glória.

Cada um dos personagens focalizados adentram a morte com seus instrumentos terrenos, são venais, inconscientes e por causa de seus pecados não atingem a Glória, a salvação eterna. Destaque deve ser feito à figura do Diabo, personagem vigorosa que, como vimos, conhece a arte de persuadir, é ágil no ataque, zomba, retruca, argumenta e penetra nas consciências humanas. Ao Diabo cabe denunciar os vícios e as fraquezas, sendo o personagem mais importante na crítica que Gil Vicente tece de sua época.

Surgem ao longo do auto três tipos de cômico, o de caráter, o de situação e o de linguagem. O cômico de caráter é aquele que é demonstrado pela personalidade da personagem Parvo, que devido à sua pobreza de espírito não mede suas palavras, não podendo ser responsabilizado pelos seus erros. O cômico de situação é o criado à volta de certa situação, como o Fidalgo, em que é zombado pelo Diabo, e o seu orgulho pisado. Por fim, o cômico de linguagem é aquele que é proferido por certa personagem, como as falas do Diabo.

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