segunda-feira, 17 de julho de 2017

Discurso de Marco Antônio, em Julius César, de William Shakespeare

Marco António:

Amigos, compatriotas, escutai-me! Venho para sepultar César, não para elogiá-lo. O mal que os homens fazem sobrevive-lhes. O bem costuma ser sepultado com os seus ossos. Que seja assim com César. O ilustre Brutus disse que César era ambicioso. Se assim foi, tratava-se de uma grave falta, e ele pagou, gravemente, pela ambição. Com a autorização de Brutus, que é um homem honrado, como também o são os demais, venho falar-vos no funeral de César. Era meu amigo, sempre leal e justo comigo. Mas Brutus diz que era ambicioso, e Brutus é um homem honrado. Muitos cativos trouxe para Roma cujos resgates encheram os cofres públicos. Era isso ambição? Se os pobres se lamentavam, César chorava. A ambição devia ser mais dura. Contudo, Brutus disse que era ambicioso. E Brutus é um homem honrado. Todos vós vistes, nas Lupercais apresentei-lhe, por três vezes, uma coroa real. E por três vezes a recusou. Era isto ambição? Contudo, Brutus disse que era ambicioso e ele é um homem honrado. Não desaprovo as palavras de Brutus! Mas estou aqui para dizer o que sei! Todos o amastes alguma vez, e não sem uma razão. Que razão, então, vos impede de chorá-lo? Ah, julgamento! Deves cobiçar os irracionais, porque os homens perderam a razão. Perdoai! O meu coração está ali, junto de César, e tenho de deter-me até que retorne a mim.

Povo de Roma:

Tem muita razão no que diz.

Penso que se cometeu uma grande injustiça com César. Terá sido assim? Temo que venha outro pior para o lugar dele.

Ouviram o que ele disse? Não aceitou a coroa, portanto não era ambicioso.

Se isso se comprovar, a alguém lhe pesará a consciência.

Não há em Roma ninguém mais nobre que António. Escutemo-lo. Dispõe-se a falar.

Tem os olhos avermelhados pelas lágrimas.

Marco António:

Ontem a palavra de César teria feito tremer o mundo. Hoje jaz na terra e não há ninguém que o reverencie. Senhores! Se eu quisesse incitar à rebelião e à cólera as vossas mentes e corações, seria injusto com Brutus e com Cássio, que como sabeis, são homens honrados. Não quero ser injusto com eles. Prefiro ser injusto com o morto, comigo e convosco, antes, do que com esses homens honrados! Mas tenho aqui um pergaminho com o selo de César. Trouxe-o de casa dele: é o seu testamento. Quando o povo lhe conhecer o testamento, que, perdoai-me, não me proponho ler, irá beijar as feridas abertas de César. Ensoparão os lenços no seu sangue sagrado. Reclamará um cabelo seu como relíquia e, ao morrer, o legará como herança para a posteridade!

Povo de Roma:

Queremos ouvir o testamento! Lê-o, Marco António! Queremos ouvir o testamento!

Marco António:

Tende paciência, nobres amigos! Não devo lê-lo! Não é conveniente que saibais quanto César vos amou! Pois sendo homens, e não leões nem pedras, enfurecer-vos-íeis ouvi-lo, cheios de desespero. Se soubésseis que vos institui herdeiros seus, o que não iria acontecer?

Povo de Roma:

Queremos ouvi-lo! Lê o testamento. Deves ler-nos o testamento de César.

Marco António:

Tereis paciência e calma? Fui demasiado longe com este anúncio. Fui injusto para com os honrados homens que apunhalaram César! Tenho medo disso.

Povo de Roma:

São uns traidores! Assassinos, cobardes!

O testamento, o testamento!

Marco António:

O testamento!... Quereis obrigar-me a lê-lo? Rodeai o cadáver e vos mostrarei o que contém o testamento. Dais-me permissão para descer?

Povo de Roma:

- Sim!

Marco António:

Se tendes lágrimas, disponde-vos agora a vertê-las. Reconheceis este manto? Recordo quando César o usou pela primeira vez. Foi numa tarde de verão, no dia em que venceu os Nérvios. Olhai! Por aqui penetrou a lâmina de Cássio! Vede o golpe que lhe abriu o malvado Casca! Com esta outra, o perfurou o seu muito amado Brutus! E ao retirar o seu maldito ferro o sangue jorrou em jacto, para assegurar-se que assim continuava com tal sanha ali a reabriu! Pois, como sabeis, Brutus era o anjo de César. Julgai com que ternura o amava! Este foi o golpe mais cruel de todos! Quando César viu que também ele o feria, a dor da ingratidão, foi-lhe mais pungente do que a da traição! Então, despedaçou-se-lhe o coração, e cobrindo o rosto com o manto, desistiu e aos pés da estátua de Pompeu, inundado em sangue, o grande César tombou morto! Que queda fatal, meus nobres compatriotas! Nesse mesmo momento, eu, vós e todos nós caímos com ele, e triunfou a sangrenta traição! Agora chorais e apercebo-me da compaixão em vós. Essas são lágrimas generosas. Almas compassivas! Não haveis visto mais que o rasgado manto dele. Vede-o bem agora! Aqui jaz desfigurado pelos traidores!

Povo de Roma:

Nobre César. Sangrento espectáculo. Traidores, vilões. Vingá-lo-emos! Que não fique vivo um único traidor! Silêncio! Ouçamos o nobre António.

Marco António:

Bons amigos, estimados amigos, não quero convidar-vos à sublevação. Os que consumaram este acto são dignos. Mas que secretas ofensas teriam para fazê-lo? Eles são sensatos e não duvido que vos darão razões convincentes. Não vim aqui para captar os vossos corações. Eu não sou um bom orador como Brutus. Sou um homem franco e simples que amava o seu amigo. E isto sabem-no bem os que me deixaram falar dele. Não tenho talento, nem eloquência, nem estilo, nem gestualidade. Nem o poder da oratória que embala os homens. Falo de modo franco e só digo o que já todos conheceis. Mostro-vos as feridas do nobre César, pobres bocas mudas, e peço que elas falem por mim. Se eu fosse Brutus, e Brutus, António, esse António provocaria os vossos ânimos e poria em cada ferida uma língua capaz de amotinar a todas as pedras de Roma! Ouvi-me no entanto! Ouvi-me, compatriotas! Não sabeis o que ides fazer! Que fez César para merecer estas provas de afecto? Ignorai-o. E esqueceis-vos do testamento! Aqui está, e com o selo de César. Nele, lega a cada romano, a cada homem, individualmente, setenta e cinco dracmas. E não só isso, também vos lega, além disso, os seus locais de passeio, as quintas e os jardins, nesta margem do Tibre. Deixa-vos, e aos vossos filhos, em perpetuidade como parques públicos, para que neles passeeis e deles desfruteis. Este era um César! Quando tereis outro como ele?

Público:

Nunca! Morte e fogo, romanos! Avante!





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